Mulheres são exemplos de superação em meio as adversidades

Enviado por Fernanda Martins em Qua, 08/03/2017 - 11:49
Pernambucana, nascida em Serra Talhada, Angelina Firmina Neta, trocou aos 10 anos de idade as bonecas, pela enxada, a conversa com as amiguinhas da escola, pelas ordens dos adultos na roça. Ao invés de desenhar na terra os sonhos de infância, ela plantava o roçado, para a mãe e os 10 irmãos se alimentarem. Chegava ao final do dia em casa queimada do sol, não graças a um dia de diversão na praia. Era o sol na roça que queimava a pele branquinha, fina e delicada da criança, após um longo dia de trabalho.

Aos 16 anos, casou-se. Saiu da terra de origem e constituiu a própria família em Juazeiro, na Bahia. “Tudo no começo são flores. Depois ele passou a ter muitos ciúmes de mim”, relata ela. Angelina não podia sair de casa, não podia falar com outras pessoas. Tudo motivava ciúmes. Mantinha-se isolada dentro de casa com a única função de lavar, passar e preparar a comida do marido.

Numa manhã, enquanto lavava as roupas, o marido saiu e pouco tempo depois voltou com um líquido transparente dentro de uma garrafa. Ele a surpreende ao derramar álcool e em seguida ascender um fósforo sobre ela. O fogo se alastrou pelo rosto, cabeça, peito, costas e braços de Angelina. Dois homens a viram em desespero e chamaram a polícia. Só com a chegada dos policiais munidos de extintor de incêndio, que as chamas no corpo de Angelina foram apagadas. A dona de casa não lembra quanto tempo levou para o fogo cessar. Só sabe que foi o suficiente para deixar queimaduras de terceiro grau.

“Ele queria me matar. Me procurou depois. Foi preso, o soltaram”, relatou. Após se recuperar, foi morar em Arco Verde, Pernambuco. Lá encontrou um novo amor. Educado, gentil e compreensivo. Ele a acolheu. A vida recomeçou mais uma vez. Tempo depois, o homem cortês foi tomado pelo ciúme. Numa noite o casal saiu. Ele a levou para trás do Terminal Rodoviário da cidade. Parecia ser apenas local para uma conversa sobre o relacionamento, até o homem desferir 13 facadas em Angelina, que ficou meses hospitalizada. Devido a gravidade dos ferimentos, Angelina perdeu o útero e tem no corpo as marcas de várias operações .

Depois de uma série de relacionamentos frustrados, entre eles o que a fez vir para o Pará, Angelina não se permitiu mais ser violentada e foi morar nas ruas de Santa Isabel, aproximadamente 48 km da capital paraense. Andava a esmo. Ela conta que homens a procuravam insistentemente para abusarem sexualmente. Antes que algo pior acontecesse, uma família se compadeceu, a acolheu e depois a direcionou para o Abrigo João de Deus, na Cidade Velha, em Belém.

Angelina se sente acolhida no Abrigo. Ela ajuda na cozinha, não por obrigação, mas por agradecimento. São sete anos morando no mesmo local. Ela nunca se sentiu tão livre em toda a vida. Livre da violência e do machismo. “O que eu sofri nesse mundo não desejo nem para o meu pior inimigo”. Angelina diz perdoar todos os homens que a humilharam, feriram, bateram, e deixaram marcas internas e eternas.

Nos dois últimos anos, ela passou a interagir melhor com os amigos e amigas do Abrigo, ao desenvolver as habilidades físicas e intelectuais, participando ativamente do projeto “Atuação da Terapia Ocupacional social com moradores de rua: resgate a cidadania”, realizado no próprio Abrigo, pela professora Rita de Cassia Gaspar da Silva e acadêmicas do curso de Terapia Ocupacional da Universidade do Estado do Pará(Uepa).

No mínimo duas vezes na semana, Angelina passou a fazer alongamentos, brincar com jogos de memória e até dançar. “ Os moradores de rua, em geral, são ociosos e levam uma vida sedentária. Eles se sentem excluídos socialmente, marginalizados pela história de vida que tem. Com esse projeto, eles melhoram o raciocínio, tem maior facilidade de se relacionarem entre eles”, diz Rita de Cássia.

Nesses momentos de descontração e risadas é que a pernambucana consegue esquecer do passado turbulento que teve. “ É muito bom receber essas atividades aqui. São muito legais. Nós ficamos muito felizes”, diz ela.

Angelina não está sozinha nas estatísticas de violência contra a mulher. De acordo com o Mapa da Violência 2015, registraram-se 4,8 assassinatos a cada 100 mil mulheres, número que coloca o Brasil no 5º lugar no ranking de países nesse tipo de crime.

Estes números se limitam ao registro de violência da mulher diretamente agredida. Certamente os índices dobrariam se levasse em consideração aqueles que convivem na mesma casa com o agressor, como filhos, irmãos, avôs e avós, pais, pessoas também violados e agredidos, mesmo que indiretamente.

Foi o caso de Ana Daniele Mendes Carrera, 24 anos, filha de Maria Irenice Mendes Carrera, 58 anos. Durante a adolescência, Ana começou a pensar até ser normal “briga de marido e mulher”, ao presenciar várias discussões entre os pais. Segundo Ana, a mãe sofria violência psicológica constantemente. Esse tipo de violência se configura em xingamentos e humilhações, em geral, precedidos de agressão física. 

“ Cheguei a pensar que estar naquela situação poderia ser culpa da minha própria mãe, por várias vezes pensei: ‘é tão fácil. É só mandá-lo embora”. Hoje consigo compreender que o medo a paralisava e a dúvida de não saber como manter as duas filhas financeiramente era constante. Há muito tempo que ela não sabia o que era trabalhar fora. Desde o casamento se tornou dona de casa, e o seu trabalho ficou restrito ao espaço doméstico, nem ao menos havia concluído o ensino médio na época”, conta Ana.

Essa fase da vida de Ana marcou tanto que a egressa do curso de Licenciatura em Pedagogia da Uepa decidiu basear o próprio Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), num estudo aprofundado da realidade das mulheres que sofrem violência doméstica. Ela buscou entender os porquês de as mulheres suportarem tanto sofrimento. A partir dessas informações, pensou em como usar a profissão e a educação para ajudá-las a sair dessa realidade.

A pesquisa foi realizada com as mulheres atendidas no Centro de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (CRAM), em Ananindeua. Ela traçou o perfil socioeconômico de cada uma e identificou que são de diferentes classes sociais e formação. Com o tema ‘’ Em briga de marido e mulher a educação mete a colher’’, Ana reforça que a educação nas escolas e nas Universidades é a saída para reduzir as diferenças entre os gêneros.

 “Com certeza falta um currículo voltado para as questões de gênero e sexualidade, desde a escola básica até os cursos de formação de professores. Preparar os profissionais da educação é fundamental para o combate a violência de gênero. Uma educação menos sexista minimizaria a violência contra a mulher”, reforçou.

Ana identificou que incentivar as mulheres a voltar à escola, se qualificarem profissionalmente, dá ânimo e forças para que saiam da condição de vulnerabilidade e dependência do parceiro, assim como ocorreu com a própria mãe. Maria Irenice concluiu o Ensino Médio e conseguiu trabalhos como doméstica. A partir disso, se sentiu forte o suficiente para encarar a vida e não mais permitir ser violentada.

Como pedagoga, Ana quer usar a profissão para ajudar outras mulheres e os filhos das mulheres agredidas. O papel dela é o de encorajá-las e encaminhá-las a cursos, assim como identificar as sequelas emocionais nos filhos e orientá-los a compreenderem a origem e a saída da violência contra a mulher. “Eu costumo dizer que a superação é diária, e a minha se iniciou por meio das pesquisas na Universidade. O conhecimento me proporcionou compreender que há uma violência específica contra as mulheres e a lutar contra ela”, ressalta. 

 

Texto: Renata Paes

Fotos: Nailana Thiely