Designer produz HQ baseada em lendas amazônicas

Enviado por Fernanda Martins em Qua, 08/03/2017 - 11:51

Uma família decide sair de férias para o interior. Eles querem descanso da rotina da cidade em troca do som do vento nas árvores, do cheiro das flores, e de embalos numa rede por horas. Mãe, pai, e os quatro filhos curtem a companhia um do outro. Para causarem medo e se divertirem à custa do irmão mais novo chamado João, as duas jovens irmãs aproveitam o cair da noite para contar a lenda da Matinta Pereira.

O irmão mais velho interrompe o momento. Totalmente descrente da existência de uma velha com os cabelos caídos no rosto, poderes sobrenaturais capazes de causar prejuízos à saúde das vítimas, e que bate na porta das vítimas e pede tabaco, o rapaz se aproxima da floresta e começa a xingar e desafiar a Matinta. Tudo para provar aos irmãos que ela não existe.

Em cima da árvore, a Rasga Mortalha, coruja de cor branca, observa toda a cena entre os quatro irmãos, que entram na casa e se acomodam para dormir. Deitado, João não consegue pregar os olhos, reflexo do medo da história da Matinta. Na madrugada, João sente calafrios ao ouvir barulhos estranhos do lado de fora da casa. O som constante se assemelha a um pano sendo rasgado. O barulho vem do bater das asas da Rasga Mortalha. A ave voa próxima a casa.

Segundo a crendice popular na Amazônia, quando a Rasga Mortalha produz esse som, é sinal que algum morador por ali está perto de morrer. A partir daí começa o drama, suspense e terror na vida da família que desejava apenas curtir as férias. O desenrolar desse enredo está nas páginas do volume um da História em Quadrinhos “Rasga Mortalha: Matinta Pereira”. O HQ foi desenhado pela egressa do curso de Design da Universidade do Estado do Pará (Uepa), Marcele Pamplona, 26 anos.

Dominado por um mercado tipicamente masculino e repleto de histórias em quadrinhos de super-heróis como Homem Aranha, Wolverine e Incrível Hulk, a paraense Marcele, orientada pela professora de Design, Brena Renata Marciel Nazaré, decidiu quebrar os paradigmas e apostou num trabalho inovador na região, com enredo inspirado nas lendas populares brasileiras, enraizadas na Amazônia.

“Conheço muito mais homens ilustradores. Aqui não conheço mulheres. Não sei se de repente elas se sentem acuadas por ser um mercado mais masculino. Eu participei do Programa Ciências sem Fronteiras, morei em Vancouver, no Canadá. Fiz um curso de quadrinhos e a maioria da turma era mulher”, diz a designer.  

A proposta da HQ de Marcele é suprir a necessidade de mercado de histórias em quadrinhos nacionais, que abordem a cultura popular.  A criadora se inspirou no costume que há entre crianças, jovens, adultos e idosos em se reunirem para contar lendas.

Marcele recorda das visitas nas férias à casa da própria avó, que mora em uma das cidades da Ilha Marajó. Lá ainda permanece forte a crendice em lendas. A designer conta que até hoje, ela, a avó, a família e os vizinhos acreditam na Matinta Pereira. Inclusive, um dos personagens da história é a própria avó de Marcele, Terezinha, 76 anos. A artista não se preocupou em dar nome a todos os personagens, pois quer que os leitores se coloquem na história.

“Fiz uma pesquisa na internet para saber se as pessoas tinham interesse em histórias em quadrinhos com lendas. Teve gente que disse que ninguém tinha medo do Saci, ou dos seres daqui, porque todo mundo tem medo de zumbi, e eu pensei:  ‘Como não ter medo da Matinta Pereira?’. De todas as lendas, ela é a que mais me assusta. Estamos acostumados com a cultura de fora que esquecemos a daqui. Perguntei no Facebook  se tinham interesse em conhecer as lendas brasileiras. Me surpreendeu o fato de as pessoas quererem conhece-las”, conta.

A criadora desenhou os personagens e o cenário com lápis e canetas próprias de desenho, usou ferramentas de edição de imagem para auxiliar nos acabamentos e dar forma a cenários mais complexos. O Casarão, localizado na travessa Pimentel Bueno, bairro do Cruzeiro, em Icoaraci, também entrou para a história, sendo a casa da personagem Terezinha. Os quadrinhos são todos em preto e branco para passar ao leitor a ideia de terror. Marcele mostrou o resultado do trabalho aos amigos, que aprovaram a ideia e pediram que novos volumes sejam produzidos.

De acordo com a professora Brena Marciel, há a necessidade de reviver os personagens das lendas brasileiras. “A história em quadrinho é um meio de comunicação contemporânea. Consegue chamar atenção de pessoas mais jovens quanto dos mais maduros. São varias faixas etárias que gostam. Fizemos apanhados históricos sobre as lendas. Há poucos registros escritos sobre elas. Tivemos muita dificuldade para conseguir material. Os quadrinhos seriam uma opção de deixarmos registradas essas lendas”, ressalta a professora.  

Sobre o crescimento do mercado de HQs baseados em lendas brasileiras, a professora orienta. “ Os próprios profissionais precisam visualizar isso como oportunidade. Hoje em dia há vários meios de colaboração corporativa para ganhar dinheiro com essa ideia. Falta que os profissionais se identifiquem, tenham interesse e consigam produzir algo que chame atenção”, ressalta ela.

Todo o projeto de Marcele baseou-se no próprio Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) intitulado “Rasga Mortalha: projeto gráfico de uma história em quadrinhos de terror inspirado nas lendas populares brasileiras”. O trabalho ganhou o primeiro lugar no Prêmio Melhor TCC 2015 da Uepa. A premiação faz honras aos melhores trabalhos produzidos na Universidade. 

 

Texto: Renata Paes

Fotos: Nailana Thiely