Educação é arma das guerreiras indígenas

Enviado por Fernanda Martins em Sex, 31/03/2017 - 11:40

Elas nunca estiveram tão presentes e atuantes na linha de frente quanto hoje. Através dos séculos, a estrutura social indígena – que também relegava às mulheres as tarefas do lar e rotina social - não pôde segurá-las. Deixando para trás a tradição do casamento precoce e cuidado exclusivo com a família, as mulheres indígenas têm a educação como porta para uma nova realidade e se juntam aos homens no papel de guerreiras nas questões de seus povos. Munidas de muita diplomacia, equilibrando tarefas e cada vez mais atuantes na política, elas mostram que o futuro das aldeias é feminino.

A problematização do papel da mulher na sociedade indígena é recente e muitos dos problemas enfrentados por elas são causados pelo contato com a cultura ocidental. Nascida e criada em Belém de pai munduruku, a professora Roberta Cabá tem a vantagem tanto do ponto de vista indígena quanto o ocidental e, para ela, diversos fatores levaram à gênese do feminismo indígena. “Antigamente, no nosso povo, não se tinha essa visão de que o masculino seria privilegiado. Existia uma divisão de tarefas e saberes. Todos eram valorizados, o pensamento era diferente. Entretanto, o contato alterou a dinâmica nas aldeias, tanto por problemas sociais que nos alcançaram quanto pelas ideias”, avaliou.

Até pouco tempo atrás, a educação indígena encerrava na 4ª série. Logo, para avançar nos estudos, os índios precisavam deixar as aldeias, com a devida autorização dos seus caciques. “Havia resistência para ambos, mas percebíamos que com as mulheres o problemas era muito maior, pois eles acreditavam que iríamos casar com o ‘homem branco’ e nunca retornar”, explicou a articuladora dos movimentos e integrante da primeira turma formada em Licenciatura Intercultural Indígena pela Universidade do Estado do Pará (Uepa), Concita Sompre, da etnia Gavião, que também é aluna da especialização Docência em Educação Indígena da Instituição.

Continuar a educação foi se tornando um objetivo cada vez mais atraente para a jovens meninas indígenas. A vice-coordenadora da Federação dos Povos Indígenas do Estado do Pará (Fepipa), Tuxati Parkatejê, tomou uma decisão drástica para conseguir a liberação, ainda nos anos 90. “Eu me casei pouco antes dos 12 anos, pois acreditava que sendo casada poderia quebrar esse pensamento. Além disso, tive o apoio do meu marido para os estudos. Ele ia junto comigo para a escola”, contou. O crescimento na estrutura educacional nas aldeias e as novas políticas públicas pela a educação auxiliam as novas gerações em suas aspirações.

Pouco a pouco, o casamento já no início da puberdade – costume ainda forte entre as etnias paraenses – deixou de ser considerado o único caminho para as meninas. “Esse é o nosso momento. Eu acho que essa geração iniciou um movimento que não tem mais volta. Vemos hoje entre as meninas essa vontade de estudar, de aprender sobre nossos direitos e lutar pela causa indígena”, colocou a titular da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, Francinara Baré.

O aumento da demanda nas trincheiras da luta indígena pelo respeito aos seus direitos originais foi outro fator preponderante para a participação da mulher no movimento político. “Sentimos uma pressão de fora para uma maior participação das mulheres na luta, pois este sempre foi um papel masculino. Nosso movimento foi tomando dimensões tão grandes, que chegou o momento em que não tinha um número suficiente de guerreiros para sustentá-lo, e as mulheres entraram. Foi natural”, disse a secretária da Fepipa, Ângela Kaxuyana.

A participação feminina na articulação política indígena também cresceu exponencialmente. “As entidades indígenas sempre foram lideradas por homens. Hoje, temos a primeira geração de mulheres na liderança. Nós saímos do papel de secretárias para o comando de associações, federações e organizações. O cenário que temos hoje é inédito”, comemorou a gerente estadual dos Direitos dos Povos Indígenas do Pará da Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos (Sejudh), Puyr Tembé. “Percebemos um nível de resistência a este crescimento em alguns homens, mas a maioria das expressões é de apoio, pois todos sabem que a nossa luta é pelo direito de todos. A mulher indígena vem para somar, não disputar”, completou.

Outra marca do movimento feminista se sobressai entre as indígenas: a sororidade. Há dois anos, Hairepramre Gavião estava imersa na rotina doméstica, alheia à realidade de fora das aldeias. Entretanto, ela foi incentivada pelas parentas a assumir seu papel na luta. “Eu nem pensava nisso. Meu dia era preparar a comida, cuidar das crianças e receber os parentes. Mas elas me abriram os olhos e eu descobri um novo propósito, tão importante quanto os demais. E as mulheres indígenas são muito assim. Uma cuida e incentiva a outra. Zelamos por nós. É o nosso jeito de ser”, declarou. Atualmente, ela participa ativamente de reuniões e outras atividades externas.

Para a integrante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), Sônia Guajajara, a internet e as redes sociais tiveram um papel fundamental no empoderamento das mulheres nas aldeias. “Sempre fomos fortes e atuantes, mas isoladas. Com as redes sociais, uma ficou sabendo do trabalho e das ideias da outra e então passamos a nos incentivar mutuamente, chamar e divulgar. Antes a gente gritava e ninguém ouvia, agora somos ouvidas”, concluiu.

 

Texto: Fernanda Martins

Fotos: Nailana Thiely